Luanda - 1. Introdução: O caso e a sua “grande novidade”
No dia 05 de Setembro de 2025, o Tribunal da Comarca de Luanda decidiu suspender a greve convocada pelo Sindicato dos Jornalistas de Angola (SJA). A manchete poderia ser apresentada como um marco da justiça laboral, mas convenhamos: em Angola, quando não há diálogo, há despacho judicial. É a versão nacional da velha máxima: “se não conseguimos conversar, chamemos o juiz para mandar calar”.
Fonte: Club-k.net
O que deveria ser um processo de concertação social transformou-se em mais uma demonstração de como o sistema de justiça se converteu em árbitro permanente de conflitos que, em qualquer sociedade madura, seriam resolvidos à mesa de negociações. Entre empresas públicas que não querem abrir mão de regalias, sindicatos que preferem greves a conversas e um Executivo sempre pronto a judicializar, o resultado é previsível: todos fingem ganhar, mas todos saem a perder.
2. A judicialização como sintoma da falta de diálogo
Já dizia Cappelletti e Garth (1988): os tribunais tornaram-se “campos de batalha dos conflitos sociais”. Em Angola, tornaram-se mais do que isso — viraram confessionário, pronto-socorro e palco de vaidades políticas. A ausência de uma cultura séria de concertação social empurra sindicatos e empregadores para o conforto frio da litigância. Como ironizou Sousa Jamba (2020), “a fragilidade das estruturas de diálogo faz com que a primeira arma de uns seja a greve e a primeira arma dos outros seja o advogado”.
A judicialização, neste contexto, funciona como uma aspirina: alivia a dor momentânea, mas não cura a doença crónica da falta de confiança mútua.
3. O papel dos tribunais: guardiões ou bombeiros de plantão?
O Tribunal de Luanda decidiu que a greve deveria ser suspensa por falta de serviços mínimos, amparando-se no artigo 40.º da Constituição da República de Angola (CRA) e no artigo 20.º da Lei da Greve (Lei n.º 23/91). Em termos jurídicos, a decisão é robusta, tecnicamente defensável e alinhada com a doutrina de Canotilho (2003), que ensina que nenhum direito fundamental pode esmagar outro.
O problema é que o tribunal virou bombeiro: apaga o incêndio do momento, mas deixa o combustível espalhado. Como alerta Boaventura de Sousa Santos (2007), “a judicialização excessiva despolitiza os conflitos, retirando-os da arena social e empurrando-os para o formalismo jurídico”. Em tradução sarcástica: a toga resolve na pressa, mas não cria paz duradoura.
4. O choque entre direitos fundamentais: o palco da ironia
Temos aqui o duelo clássico:
Direito à greve (artigo 51.º da CRA), mecanismo legítimo de pressão laboral;
Direito à informação (artigo 40.º da CRA), condição básica para a democracia.
O sindicato quis desligar os microfones; o tribunal disse “nem pensar”. No meio, a sociedade ficou sem perceber se a prioridade era a dignidade do jornalista ou a novela das 21 horas.
Habermas (1992) fala em diálogo racional como fundamento da democracia. Em Angola, parece que preferimos diálogos irracionais mediados por despachos judiciais.
5. A urgência das vias consensuais (que só existem nos manuais)
Os manuais de negociação ensinam que a mediação cria soluções duradouras. Fisher, Ury e Patton (1991) mostram que negociar com base em interesses e não em posições é o caminho. Mas aqui, interesses são segredo de Estado e posições são irredutíveis.
A negociação colectiva, que deveria ser a espinha dorsal das relações laborais, não passa de retórica. A consolidação do diálogo social é celebrada nos discursos de 1.º de Maio, mas na prática continua a ser letra morta.
Resultado? Prefere-se gastar recursos com tribunais, quando uma mesa redonda com mediadores independentes custaria menos e renderia mais.
6. O papel do Estado: árbitro, jogador e dono da bola
O Estado angolano tem uma habilidade peculiar: é árbitro, jogador e dono do campo ao mesmo tempo. Quando surge conflito, em vez de criar condições para mediação, chama logo o tribunal, que funciona como braço alongado do Executivo. Amartya Sen (2000) falava em “expansão das liberdades reais” como critério de desenvolvimento. Aqui, o que se expande é a cultura do despacho.
Se cada greve for parar ao tribunal, cria-se uma sociedade onde negociar é sinónimo de ingenuidade, e litigar é sinal de inteligência política.
7. Judicialização como última instância (mas usada como primeira)
A função dos tribunais é garantir legalidade, não gerir conflitos sociais. Bobbio (1995) já lembrava que o Estado de direito mede-se também pela capacidade de prevenir litígios. No entanto, em Angola, parece que o Estado gosta de deixar o fogo alastrar só para depois posar como bombeiro heróico.
A judicialização devia ser o último recurso, mas transformou-se no primeiro reflexo. Resultado: temos tribunais sobrecarregados e uma sociedade cada vez mais incapaz de dialogar.
8. Conclusão: Entre o sarcasmo e a realidade nua e crua
A greve foi suspensa. Os jornalistas calaram-se, o tribunal foi aplaudido, o Executivo respirou aliviado. Mas a verdade é que nada foi resolvido. O conflito estrutural — salários baixos, más condições de trabalho, ausência de diálogo — continua intocado.
Habermas (1992) disse que democracia é, antes de tudo, um processo comunicativo. A ironia é que, em Angola, democracia está cada vez mais reduzida a um processo judicial.
Entre negociar e litigar, já sabemos de que lado a balança pende. O problema é que, nesse jogo, quem paga a factura é sempre o mesmo: o cidadão, que perde acesso a informação de qualidade, vê direitos fundamentais desvalorizados e assiste, impotente, a um Estado que prefere o martelo do juiz à mesa do diálogo.